A Bíblia é a Palavra de Deus... ou a mensagem divina está na Bíblia?
As Escrituras Sagradas da tradição judaico-cristã não são apenas um livro, mas uma coletânea de textos que foram sendo reunidos ao longo de muitos séculos. O Antigo Testamento, por exemplo, abrange escritos que se formaram entre aproximadamente o século XIII a.C. e o século II a.C., enquanto o Novo Testamento foi escrito no primeiro século da era cristã, entre cerca de 50 e 100 d.C. Ao longo desse extenso período, os textos foram produzidos por autores diversos, em contextos culturais, sociais e históricos distintos, utilizando línguas como o hebraico, o aramaico e o grego. Esses textos passaram por seleções, edições e traduções até chegarem à forma canônica que conhecemos hoje, tanto na tradição judaica quanto nas diversas tradições cristãs.
Nesse longo processo, é natural que as Escrituras reflitam elementos próprios das culturas locais e dos tempos em que foram redigidas. Há leis, costumes, modos de organização social e discursos que expressam uma visão de mundo antiga, às vezes patriarcal, tribal ou teocrática, profundamente marcada por valores que não correspondem necessariamente aos princípios eternos que associamos à mensagem divina. É nesse ponto que se torna fundamental compreender que a Bíblia contém a Palavra de Deus, mas não é a Palavra de Deus no sentido literal ou inquestionável de cada uma de suas passagens.
O núcleo da fé judaico-cristã sustenta que Deus se revelou ao longo da história por meio de pessoas inspiradas — profetas, líderes, sábios e, no caso do cristianismo, especialmente em Jesus Cristo. Essa revelação, no entanto, foi registrada por mãos humanas, limitadas ao seu tempo, à sua cultura e à sua linguagem. Assim, em meio a uma pluralidade de textos, surgem regularidades, repetições e temas centrais que indicam uma constante: uma mensagem transcendente que aponta para a justiça, a misericórdia, o amor ao próximo, a compaixão e o perdão. Essa é a Palavra que emerge das páginas da Escritura e que os crentes reconhecem como revelação divina.
Portanto, ler a Bíblia com seriedade e profundidade exige discernimento. É necessário saber separar o que é contexto cultural e histórico do que é inspiração espiritual. Não se trata de relativizar tudo, mas de reconhecer que certas normas e práticas descritas nas Escrituras refletem o mundo antigo e não devem ser automaticamente aplicadas ao nosso tempo. Quando se ignora essa distinção, corre-se o risco de impor regras injustas, que podem gerar discriminação, violência ou exclusão — exatamente o oposto da proposta de Deus, que é vida plena, dignidade e reconciliação.
A leitura da Bíblia deve ser feita com reverência, mas também com consciência crítica, com o auxílio do estudo teológico, da história e da razão iluminada pela fé. É preciso escutar a voz de Deus que fala por meio das Escrituras, sem perder de vista que ela fala através de vozes humanas, marcadas por suas circunstâncias. A fidelidade à Palavra de Deus não está em repetir literalmente cada versículo, mas em captar e viver o espírito da mensagem que liberta, que transforma e que constrói a justiça.